16/01/10

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"Quando, há uns anos atrás, um jornalista da rádio Teerão pediu aos rios que deixassem que correr e às estrelas que deixassem de brilhar durante o funeral de Khomeini, eu estava longe de imaginar que fosse capaz de fazer idêntico pedido se tu me faltasses. Já se vê que tu me faltas, mas existes, e só isso basta para saber que á sempre uma razão, mesmo que seja única, para acordar todas as manhãs.
De manhã faz frio lá em casa porque uma das janelas da cozinha tem uma pequena abertura onde todo o frio do mundo se reúne cedinho para me atormentar os pés. Acordo por isso todas as manhãs com os pés gelados porque durante a noite ás voltas na cama a fugir dos sonhos maus e também dos bons, transformando o meu dormitório numa espécie de cabo das tormentas sem salvação à vista.
Chegou o Natal, as pessoas andam mais felizes porque vão chegando a nossa casa postais de parentes de que há muito não ouvíamos falar. Escrevi uma carta ao Pai Natal onde lhe peço que me dê tudo aquilo que mereço, mesmo sabendo que não mereço muito. Não lhe peço nada de especial porque sinto que o Pai Natal sabe do que eu preciso e, atendendo a isso, não deve demorar muito para que tenhas uma nova morada.
Chego à conclusão de que as pessoas têm medo de se apaixonarem porque têm medo de sofrer. Faz-me lembrar aquela velha situação que tu chegas com um animal a casa e os teus pais o rejeitam liminarmente dizendo “ mais um para termos um desgosto”, “nem penses, leva-o daqui para fora enquanto é tempo” enquanto lhe vão fazendo uma festinha no focinho.
A paixão é mais ou menos isto. Uma vontade de a agarrarmos sem reservas sem contudo a aceitarmos de animo leve. É isso, não é? Uma vontade de ficarmos para toda a vida com ela mesmo sabendo que um destes dias o mais certo é morrer atropelada por alguém que não a viu a tempo. Talvez por isso, a minha paixão por ti atravessa sempre nas passadeiras e olha para os dois lados antes de chegar á outra margem. Quero que saibas que a minha paixão por ti é órfã de pai e de mãe, mas vive feliz na Casa do Gaiato. Não tem vícios, não bebe, não fuma e já não tem esperança de encontrar os parentes que a fizeram nascer. Talvez porque tenha aprendido a crescer sozinha e se tenha habituado a essa condição, na certeza de que o mais importante na vida não é o triunfo, mas a luta para o alcançar.
A minha paixão já não chora à noite porque se lhe secaram as lágrimas e reduziram a terra húmida todos os seus sonhos. Já não espera pelo beijinho de boas-noites porque sabe que ele não vem e, por isso, num raro exercício de auto-estima abraça-se a ela própria como se estivesse a ser agarrada. A minha paixão não tem dono, não é de ninguém, é autodidáctica e vive só para ela. A minha paixão existe, vive comigo sem estar aqui e é isso que importa. Porque se um dia morrer, gostaria que os rios deixassem de correr e as estrelas de brilhar. "

2 comentários:

O Espreita Aviões disse...

Independentemente de existir o medo de desaparecerem, as paixões não deviam ser guiadas pelo medo.
Se assim fosse não haviam paixões.

Se a queda pode ser grande? Pode. Se o desgosto pode ser grande? Também pode. Mas é mesmo assim. Temos paixões desde o dia em que nascemos. Sejam simples afectos ou grandes afectos, sejam mesmo a nível material e/ou pessoal num outro sentido de paixão, seja como for.

As quedas doem. Mas tudo acaba por doer a alguém. Acho que vale a pena o sacrifício próprio pelo bem de outros. Seja pelo bem de uma pessoa que não nos quer ver mais à frente, ou pelo de um animal que só queira companhia. Há bem mais exemplos, mas não vou divagar muito.
Some few more things later*

O Espreita Aviões disse...

E preciso de uma fotógrafa! ;)